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Há um conflito entre o Cadastro Positivo e a LGPD?

Agora os pagamentos serão incluídos automaticamente no cadastro


O Cadastro Positivo do Serasa irá passar a ser automático. Essa lei que prevê a inclusão de todos os pagamentos no cadastro foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro e começou a valer em julho de 2019. Essa base de dados serve para mostrar às instituições financeiras se a pessoa é uma boa pagadora, mantendo um registro de dívidas anteriores sem que o consumidor precise ativamente dar o consentimento.

 

A vantagem de estar incluído nesse cadastro é que a pessoa pode conseguir crédito mais barato e com melhores condições se tiver um bom histórico. Antes, para estar nesse banco de dados era preciso manifestar interesse em uma agência do Serasa. Se o consumidor não fizesse isso, eram registradas somente as inadimplências, ou seja, só havia um "cadastro negativo". Os dois tipos de cadastro ajudam a formar o score, que é a pontuação que determina o quanto ela está propensa a pagar uma dívida.

 

Para tirar as principais dúvidas sobre o assunto, conversamos com a cientista da computação Angela Maria Rosso, especialista em direito digital e em LGPD. Ela nos conta sobre os direitos dos consumidores com o cadastro positivo:

 

O cadastro positivo vai contra o que pede a Lei Geral de Proteção de Dados?

 

Essa é uma pergunta que tem causado muita divergência de pensamento entre os diferentes setores da sociedade, há quem entenda que a presença da base legal proteção ao crédito na Lei Geral de Proteção de Dados (art. 7, inciso X) é condição suficiente para autorizar a inclusão automática de todos os brasileiros no banco de dados do Cadastro Positivo.  Os defensores dessa linha entendem que é suficiente para legitimar o tratamento desses dados a possibilidade que a pessoa tem de solicitar a retirada de seu nome do cadastro quando assim o desejar.

 

De outro lado há quem defenda que existe conflito entre as duas leis uma vez que a pessoa deveria ser consultada previamente à inclusão de suas informações nessa  base de dados uma vez que o score de cada um será construído a partir desses dados e a partir desse score é que serão determinadas as condições de crédito que lhe serão oferecidas . Aqueles que defendem essa posição argumentam que a inclusão do nome das pessoas nessa base de dados somente poderia acontecer mediante o consentimento do indivíduo que para estar em acordo com a Lei de Proteção de Dados precisa ser prévio, livre, informado e inequívoco.

 

Saliente-se que recentemente a Lei do Sigilo bancário foi modificada para justamente para excluir o tratamento de dados financeiros e de pagamentos para a finalidade de formação de histórico de crédito do rol das informações protegidas pelo sigilo bancário, eliminando assim a necessidade de consentimento, avaliado sob esse prisma não há que se falar em colisão entre as duas normas, uma vez que afastada a necessidade de sigilo, afasta-se também a necessidade de consentimento, esses dados podem ser tratados de forma lícita apoiados em outra base legal prevista na LGPD.

Dessa forma, é pertinente esperar que a ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados - se posicione acerca de quais tipos de operações com dados pessoais se enquadram na base legal proteção ao crédito. Desse entendimento técnico será possível determinar com maior clareza se a inclusão automática das pessoas ao Cadastro Positivo colide ou se está em conformidade com a LGPD.

 

Que tipo de dados vão estar nesse cadastro?

 

Os dados que estarão neste cadastro  serão aqueles dados considerados cadastrais tais como o nome, o CPF e endereço além disso também constarão no banco de dados do Cadastro Positivo o histórico de pagamento e de adimplemento da pessoa, ou seja, se ela já fez empréstimos, se pagou ou está pagando esses empréstimos dentro do acordado bem como seu comportamento como consumidora, se ela paga nos prazos suas contas de água, luz, telefone e gás, por exemplo.

 

É preciso salientar que a lei que regulamenta o Cadastro Positivo proíbe expressamente que sejam incluídos dados sensíveis, como aqueles referentes à religião e dados de saúde, por exemplo.

 

Como pedir alteração ou remoção de dados do cadastro positivo?

 

Quando a pessoa for cadastrada em um banco de dados destinado ao cálculo da pontuação para o sistema do Cadastro positivo, o responsável pelo cadastro tem a obrigação de avisá-la em até 30 dias a respeito da inclusão do seu nome e também tem o dever de informar sobre quais os canais disponíveis para que ela solicite o cancelamento da inscrição. Essa solicitação deve ser gratuita para o cadastrado e pode ser feita por meio telefônico, físico (pessoalmente) ou ainda eletrônico (serviços de chat, email, por exemplo). 

 

No caso de cancelamento da inscrição ele deve ser feito pelo responsável pela base de dados em até 2 dias úteis. É importante lembrar que a manifestação pode ser realizada de forma prévia, ou seja, a pessoa pode dizer que não quer ter seu nome incluído no cadastro antes ainda de ser comunicada sobre a inscrição, nesse caso o cancelamento deve ser automático.

 

 

Quais as vantagens e desvantagens dessa inclusão automática no cadastro?

 

O governo, as entidades de proteção ao crédito e as instituições financeiras alegam que a inclusão automática é benéfica uma vez que será possível através dela baixar as taxas de juros para empréstimos e financiamentos para aqueles que são considerados bons pagadores, o que seria um ponto positivo em um país onde as taxas de juros do cartão de crédito ultrapassam os assustadores 300% ao ano. Assim, essas pessoas, aquelas que pagam suas contas em dia, seriam imediatamente beneficiadas porque não precisariam se dar ao trabalho de solicitar a inclusão do seu perfil na base de dados.

 

Contudo, é preciso esperar para ver se esse não é apenas um argumento para que as entidades tenham acesso aos valiosos dados da vida financeira e de consumo das pessoas de forma quase ilimitada. Se realmente haverá essa queda nos juros ou se viveremos novamente a história das bagagens aéreas em que deveríamos ter presenciado uma baixa no valor das passagens com a retirada da bagagem gratuita, mas não foi o que ocorreu. 

 

Outra vantagem é que o Cadastro Positivo inclui também informações obtidas da pessoa a partir de seu comportamento como consumidor, assim, todos aqueles que nunca utilizaram o sistema bancário, um número muito grande de pessoas em se tratando de Brasil, estarão incluídos no Cadastro Positivo e conseguirão ter acesso ao crédito se porventura precisarem.

 

Como desvantagens pode-se destacar a pouca transparência na valoração dos requisitos que compõem a pontuação de cada inscrito, como, por exemplo, qual o peso que as informações sobre inadimplementos têm na formação da pontuação.

 

Além desse fator não se pode esquecer que o cenário é de uma crise econômica prolongada com milhões de desempregados que ficaram inadimplentes em relação aos seus empréstimos porque não tem renda sequer para alimentação, essas pessoas certamente sofrerão discriminação seja porque não terão mais acesso a crédito ou porque os juros a que se submeterão serão muito maiores do que aqueles disponibilizados para os demais colocando-os assim em uma posição de eterna inadimplência. Sob o prisma da proteção de dados poder-se-ia levantar outra questão que é a formação de perfis de consumo que pode ser feita através da análise da vida financeira da pessoa.

 

Como você acha que os brasileiros enxergam a proteção de seus dados?

 

Acredito que os brasileiros ainda estão pouco conscientes sobre a importância de proteção dos seus dados ou de pelo menos saber como as suas informações pessoais têm sido utilizadas. Infelizmente no Brasil houve um processo de inclusão digital sem educação digital e as pessoas não possuem conhecimento da importância que seus dados pessoais assumem ao serem utilizados como insumo para a economia, verdadeiro ativo para as organizações.

 

É preciso mostrar para as pessoas que quando as informações por elas cedidas são utilizadas sem controle existe grande possibilidade de que elas sejam utilizadas para discriminá-las ou para tornar uma sociedade menos democrática, por exemplo. Quando tiverem essa consciência de que alguns serviços podem ser-lhes negados pelo simples fato de ser portador de determinada doença ou que o plano de saúde não está aprovando nossa proposta por causa do nosso histórico familiar que foi conhecido através do cruzamento de nossos dados é muito provável que elas mudem o modo como enxergam seus próprios dados e adotem comportamentos de maior autopreservação.

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